Encerrando a série de posts sobre "As Origens Cristãs e o Misticismo Apocalíptico. Uma
Leitura de At 2, 1-4" apresento aqui o último capítulo, com toda a bibliografia usada nas três publicações, sobre a relação da tradição do misticismo apocalíptico e os Cristianismos das Origens. Caso queira se inteirar em todo o assunto, leia as outras duas postagens ("As Origens Cristãs e o Misticismo Apocalíptico. Uma Leitura de At 2, 1-4 " e "As Origens Cristãs e o Misticismo Apocalíptico. Uma Leitura de At 2, 1-4 [parte II]).
Imagens
apocalípticas do mundo celestial e a experiência de êxtase em At 2, 1-4
Para entendermos
a presença desses elementos do trono celestial no texto e na experiência
religiosa da comunidade cristã, como aparece em At 2,1-4, as obras litúrgicas
entre os Manuscritos de Qumran são importantes, pois refletem a ideia comum no
Judaísmo Antigo da associação com o mundo angélico (García Martínez, 2000, p.
188), em especial nos Cânticos do
Sacrifício Sabático (Shîrôt ôlat ha-shabbat = 4QShirim‘Olot ha-sabbat =
4QShirotShabba-h), testemunhados em oito cópias na caverna quatro
(4Q400-4007), uma na caverna onze (11Q17 =11QShirShabb) e em Massada
(Fletcher-Louis, 2002, p. 252-254). “Os Cânticos
têm extáticas qualidades e podem evocar experiências místicas ou sete
experiências visionárias de membros da comunidade” (A. Collins, 1996, p. 14). E
como alguns pesquisadores afirmam, a leitura dos Shîrôt proporcionava aos membros da comunidade a participação nos
sacrifícios sabáticos dos anjos no templo celeste, substituto do templo de
Jerusalém (García Martínez, 2000, p. 58). Collins chega a afirmar que a
experiência de leitura desses textos no contexto litúrgico gerava a mesma
sensação da leitura dos apocalipses do tipo viagem
celestial (Collins, 1997a, p.141), porque conduzia a comunidade à caminhada
imaginária nos santuários celestes e à participação entre os anjos no culto nos
céus. Carol Newsom segue o mesmo raciocínio e afirma que a recitação dos
cânticos gerava experiência de êxtase e levava a comunidade à liturgia angélica
(Newsom, 1998, p.20). Por isso, Nicklesburg, seguindo esses autores, afirma que
Em
geral, seu conteúdo não é tecnicamente litúrgico, isto é, os cânticos não se
dirigem a divindade. Em vez disso, eles descrevem a angélica adoração e apela
para os anjos participarem nessa adoração. Então, podemos vê-los ‘como meio de
comunicação com os anjos no ato do louvor, e uma forma de misticismo
comunitário’. Eles criavam uma experiência pela qual a comunidade na Terra era
levada emocionalmente para a presença dos anjos e, certamente, diante do trono
da divindade (Nicklesburg,
2005, p.153)
Os Cânticos
mostram a íntima relação das realidades celestial e terrena no imaginário do
culto no mundo judaico-cristão. Além dessa função de associação, as realidades
celestiais são reveladas para servirem de modelo para os cultos humanos, como
se fosse possível contemplar o mundo da casa de Deus servindo-se dele como
paradigma de adoração para a comunidade. Assim, os sacerdotes angélicos são modelos
e legitimadores transcendentes da função sacerdotal na Terra.
Em
At 2,1-4 encontramos a presença de elementos celestiais no culto cristão. Esse
texto, como vimos, pode ser mais antigo do que sua redação lucana e reflete, ao
lado de alguns textos paulinos, a imagem de um Cristianismo cheio de
experiências de transe religioso e êxtase. Na literatura apocalíptica, essa
experiência religiosa está vinculada a elementos que fazem parte da realidade
celestial (da Mercavah). As línguas
de fogo é um dos elementos que compõem esse quadro, como citamos, porque estão
nas paredes e portas do trono celestial na visão de Enoque – e o próprio fogo,
que desde Ezequiel, como também na literatura de Qumran, está vinculado a Mercavah.
Segundo Paulo
Nogueira, a própria glossolalia fazia
parte da realidade do culto celestial. Ele chega a essa conclusão com a leitura
de 4Q400 frag. 2, 7-11 (Nogueira, 2003, p.66). Neste texto, na linha 7 aparece
a expressão língua do pó em contraste
com língua de conhecimento, da linha 11, que pode ser referência a algum idioma
angelical. Nickelsburg percebe que este contraste claro entre o conhecimento humano e dos seres celestes está no âmbito do tributo de louvor a Deus
(Nickelsburg, 2005, p.152). Os anjos teriam uma espécie de língua excepcional
na tradição judaico-cristã de louvor – como o mesmo Nogueira indicou usando o Apocalipse de Paulo (Nogueira, 2003,
p.69).
Em At 2,1-4
estamos diante de um texto que nos revê-la uma comunidade cristã influenciada
por imagens apocalípticas, acessadas por visionários em viagens celestiais
vinculadas ao misticismo da Mercavah.
O texto em si não narra uma viagem celestial, mas usa o imaginário do
templo celestial exposto por esse subgênero, muito comum na literatura
apocalíptica. As línguas de fogo e a própria glossolalia faziam parte da
realidade celeste, mas à luz de At 2 estavam presentes na fé das comunidades
cristãs em cultos cheios de êxtase.
At 2,1-4 dá-nos
pistas sobre como o mundo apocalíptico foi apropriado e (re)significado nas
práticas culticas dos Cristianismo (s) Originário (s). Talvez, como fez Paulo,
Lucas domesticou propositalmente, em nível redacional, essa experiência com o
objetivo de criar fronteiras.
Acredito, e isso
precisa ser averiguado, que na pluralidade de Cristianismos das Origens
houvesse alguns grupos mais eufóricos, que supervalorizavam as experiências
extáticas e o mundo apocalíptico. E mais, é possível, como acontecia com os Cânticos do Sacrifício Sabático, que
suas tradições fossem usadas para incentivo e legitimação de experiências
coletivas.
Conclusão
Assim, Reafirmo a conclusão de C. Rowland, de que é
impossível entendermos as origens dos Cristianismos das Origens sem tratarmos
com cuidado a apocalíptica judaica. No texto de At 2,1-4, creio ser essa
afirmação indispensável, pois a narrativa revela alguns indícios da presença de
temas do imaginário apocalíptico das viagens celestiais. E mais, a experiência
religiosa refletida na narrativa revela um Cristianismo de liturgia não
controlada, como alguns exegetas pintaram durante bom tempo sobre a origem
cristã, mas de uma comunidade com experiências extáticas e que compartilhava das
realidades celestiais testemunhadas pela literatura apocalíptica.
Depois de muito tempo após sua produção e
circulação, o mesmo texto serviria, durante o Séc. XX, para outros movimentos
cristãos carismáticas, tais como o Pentecostalismo Clássico e a Renovação
Carismática Católica. Isso mostra a dinâmica da recepção dos textos religiosos,
e como temas antiguíssimos, como os encontrados na literatura mística do
Judaísmo do segundo templo, permanecem vivos na cultura.
Referências
Bibliográficas
BAKHITIN,
M. Questões de estética e literatura: a
teoria do romance. São Paulo: HUCITEC, 1988.
BARRERA,
J. Trebolle. Os textos de Qumran e o Novo
Testamento. In: García Martínez (org.). Os homens de Qumran. Literatura, estrutura e concepções religiosas.
Petrópolis, RJ: 1996, p. 273-190.
BOCCACCINI, Gabriele. Introduction: From the Enoch Literature to Enochic Judaism. In:
BOCCACCINI, Gabriele. Enoch and Qumran Origins: New Light on a
Forgotten Connection. Grand Rapids: W. B. Eerdmans, 2005, p. 1-16.
BOCCACCINI, Gabriele. Beyond the Essene Hypothesis: The Parting of
the Ways between Qumran and Enochic Judaism. Grand Rapids: W.
B. Eerdmans, 1998.
BOER, Martinus de. A influência da apocalíptica judaica sobre
as origens cristãs: gênero, cosmovisão e movimento social. In: Estudos de
Religião 19 (2000): 11-24
CHARLESWORTH,
James H (Ed.). The Dead Sea Scroll and
the Qumran Community. The Bible and the Dead Sea Scrolls. Vol 1. Texas:
Baylor University Press, 2006.
COLLINS, Adela Yarbro. Cosmology and Eschatology in Jewish and
Christian Apocalypticism. (Supplements to the Journal for the study of
Judaism, Vol. 50). Leiden/New York
/Köln: Brill,1996.
COLLINS John J. Apocalyptic
Eschatology as the Transcendence of Death. In: Catholic Biblical Quarterly 36 (1974): 21-43.
COLLINS, John J. (ed.). Apocalypse:
The Morphology of a Genre. Semeia
14 (Society
of Biblical Literature). Missoula, Mont.: Scholars Press., 1979.
COLLINS, John J. Apocalypticism in the Dead Sea
Scrolls. London: Routledge, 1997a.
COLLINS, John
J. Seers, Sibyls and Sages in Hellenistic-Roman Judaism. Leiden: Brill, 1997b.
COLLINS,
John J. A Imaginação apocalíptica. Uma introdução à literatura apocalíptica
judaica. São Paulo: Paulus,
2010.
DAVILA, James R. Descenders to the Chariot: The People Behind the Hekhalot
Literature (Supplements to the Journal for
the Study of Judaism, Vol. 70). Leiden/New York /Köln: Brill, 1960.
DIEZ
MACHO, Alejandro. Apócrifos del Antigo
Testamento. Vol. IV. Madri:
Ed. Cristiandad, 1987.
DITOMMASO,
Lorenzo. Apocalypses and Apocalypticism in
Antiquity (Part I). In: Currents in
Biblical Research 5.2 (2007): 235-268.
FIORIN, José L. Linguagem e ideologia. São Paulo:
Ática, 2007.
FLETCHER-LOUIS,
C. H.T. All the Glory of Adam. Leiden/Boston/Köln:
Brill, 2002.
FUNARI,
Pedro Paulo A.; SILVA, Glaydson José da. Teoria
da história. São Paulo:
Brasiliense,
2008.
GARCÍA
MARTÍNEZ, Florentino. Qumranica Minora
I: Qumran Origins and Apocalypticism. (Studies on the Texts of the Desert of Judah, Vol. 63). Leiden-Boston:
Brill, 2007.
GARCÍA
MARTÍNEZ, Florentino. Textos de Qumran.
In: PÉREZ, Aranda G.; GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino; FERNÁNDEZ, P. M. Literatura judaica intertestamentária.
(Introdução ao Estudo da Bíblia, Vol. 9). São Paulo: editora Ave-Maria, 2000,
p. 13-213.
GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Qumran and Apocalyptic. Studies on the
Aramaic Texts from Qumran. New York: E.J.
Brill, 1994.
GIESCHEN, Charles A. Angelomorphic
Christology Antecedents and Early Evidence. Leiden: Brill,1998.
GOODMAN, Felicitas D. Speaking
in Tongues: a Cross-Cultural
Study of Glossolalia. Chicago: University of Chicago Press, 1972.
GRABBE, Lester L.; HAAK, Robert D. Knowing. The End Form the Beginning: The Prophetic, the Apocalyptic and their
Relationships. In: Jornal for Study
of the Pseudepigrapha, Supplements, v. 46 (2003): 2-37.
HANSON, Paul D. The Dawn of Apocalyptic. The Historical and
Social Roots of Jewish Apocalyptic Eschatology. Philadelphia: Fortress,
1975.
HANSON, Paul D. “Apocalypse, Genre” and “Apocalypticism”.
In: CRIM, K. (org.). Interpreter’s Dictionary
of the Bible. (Suplementary Volume). Nashville: Abingdon Press, 1976, p.
31-58.
HIMMELFARB,
Martha. Ascent to Heaven in Jewish e
Christian Apocalyses. New York: Oxford University Press, 1993.
KITTEL, G.;
FRIEDRICH, G.; BROMILEY, G. W. Theological
Dictionary of the New Testament. Grand Rapids, Mich.: W.B. Eerdmans,
1995.
LEWIS, Ioan. Êxtase religioso: um estudo antropológico da possessão por espíritos e
do xamanismo. São Paulo: Perspectiva, 1997.
MACHADO,
Irene. Escola de semiótica. A experiência
de Tartú-Moscou para o estudo da cultura. São Paulo: Ateliê
Editorial/FAPESP, 2003.
MACHADO, Jonas. Louvor
ao triunfo divino. Vestígios do misticismo apocalíptico paulino em 2 Cor
2,14-17. In: Oracula 5/10, 2009. Disponível em http://oracula.com.br. Acesso em
03/07/2011.
MALINA, Bruce J.
On
the Genre and Message of Revelation: Star Visions and Sky Journeys. Peabody/Massachussets: Hendrickson Publishers,
1995.
MARGUERAT,
Daniel. A primeira história do
Cristianismo: os Atos dos Apóstolos. São Paulo: Loyola/Paulus, 2003.
NEWSOM,
Carol. Songs of the Sabbath
Sacrifice: A Critical Edition. Atlanta: Scholars Press, 1985.
NICKELSBURG,
George W. E. Jewish Literature Between the Bible and the Mishnah. A
Historical and Literary Introduction. 2 ed. Minneapolis: Fortress Press,
2005.
NICKELSBURG,
George W. E. 1 Enoch: a Commentary on the Book of 1 Enoch, chapters 1-36; 81-108.
Minneapolis: Fortress, 2001.
NICKELSBURG, George W. E. Enoc, Levi,
and Peter: Recipients of Revelation in Upper Galilee. In: Journal of Biblical Literature
100(1981): 575-600.
NOGUEIRA,
Paulo A. S. Experiência religiosa e
crítica social no Cristianismo primitivo. São Paulo: Paulinas, 2003.
PERVO,R. I.;
ATTRIDGE, H. W. Acts: A commentary on the Book of Acts.
(Hermeneia – a critical and historical commentary on the Bible). Minneapolis:
Fortress Press, 2009.
ROWLAND, C.;
MORRAY-JONES, Christopher R. A. The Mystery
of God. Early Jewish Mysticism and the New Testament (Compendia Rerum
Iudaicarum ad Novum Testamentum, Volume 12) Leiden: Brill Academic, 2009.
ROWLAND, C. The Open Heaven: A Study of Apocalyptic in Judaism and Early
Christianity. New York: Crossroad, 1982.
SACCHI, P. Jewish Apocalyptic and
its History. Sheffield: Sheffield Academic, 1990 (JSPSup 20.).
SCHOLEM Gershom. As grandes
correntes da mística judaica. São Paulo: Perspectiva, 1972.
TABOR, James. Ascent
to Heaven in Antiquity.
In: The Jewish Roman World of Jesus
(Hellenistic/Roman Religion and Philosophy), 1999. Disponível
em http://religiousstudies.uncc.edu/people/jtabor/index.html.
Acesso em 03/07/2011.
TABOR, James. Things Unutterable: Paul's Ascent to
Paradise in its Greco-Roman, Judaic, and Early Christian Contexts. Lanham,
MD: University Press of America, 1986.
TERRA,
Kenner R. C. De guardiões a demônios: a
história do imaginário do pneûma akátharton e sua relação com o mito dos
vigilantes. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), UMESP, São
Bernardo do Campo, 2010.
VANDERKAM, James
C. Enoch, a Man for All Generations.
Columbia: University of South Carolina Press, 1995.
YONGE, C.
D. The works of Philo: Complete and
Unabridged. Peabody: Hendrickson, 1996.
WITHERINGTON
III, B. The Acts of the Apostles: A socio-rhetorical commentary.
Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Co, 1998.
Muito legal Kenner! Que pena que aquele nosso estudo conjunto (céu e inferno) teve que ser adiado...
ResponderExcluirAbração,
Eliz
Olá Eliz,
ResponderExcluirValeu pelo comentário. É verdade, uma pena o adiamento do projeto. Contudo, disseste bem: adiamento!
abração
Olá Kenner,
ResponderExcluirPaz e Bem!
Percebo que a tendência de buscar nas tradições judaicas, e suas literaturas, a compreensão dos textos e teologias contemporâneas é uma prática já estabelecida na academia. Embora seu texto enalteça mais a perspectiva exegética, penso que esse caminho decline fatalmente em direção a outro tema bem explorado aqui no Brasil: a busca pelo Jesus histórico. O historiador André Leonardo Chevitaresse, naturalmente numa perspectiva histórica, tem em andamento um grupo de pesquisa sobre o assunto.
Li os três posts; e como é bom conhecer novas bibliografias a fim de compreender melhor a nossa tradição. Nisso está a importância de se ter um pesquisador em plena produção. Força nessa caminhada!
Um abraço,
M.O.O
Rio de Janeiro - RJ
Olá Marcelo,
ResponderExcluirobrigado pela participação e sugestivo comentário. Sim, conheço o prof. Chevitarese, inclusive ele dialoga muito com o nosso grupo de pesquisa (oracula - www.oracula.com.br).
Sobre a questão das perspectivas exegética e histórica, não sei se seria possível bifurcá-las, como se fossem dois trabalhos diferentes. Tanto os métodos históricos quanto a exegese podem ter a experiência religiosa como preocupação e dialogarem com um campo vastíssimo de ciências que ajudem na leitura e construção do passado. As duas ferramentas são hábeis para tecerem ficções gramaticais, como dia N. Frye.
Continuemos dialogando e trocando bibliografias...
Grande abraço