domingo, 12 de fevereiro de 2012

As Origens Cristãs e o Misticismo Apocalíptico. Uma Leitura de At 2, 1-4 (Final).

Encerrando a série de posts sobre "As Origens Cristãs e o Misticismo Apocalíptico. Uma Leitura de At 2, 1-4" apresento aqui o último capítulo, com toda a bibliografia usada nas três publicações, sobre a relação da tradição do misticismo apocalíptico e os Cristianismos das Origens. Caso queira se inteirar em todo o assunto, leia as outras duas postagens ("As Origens Cristãs e o Misticismo Apocalíptico. Uma Leitura de At 2, 1-4 " e "As Origens Cristãs e o Misticismo Apocalíptico. Uma Leitura de At 2, 1-4 [parte II]).  

Imagens apocalípticas do mundo celestial e a experiência de êxtase em At 2, 1-4

            Para entendermos a presença desses elementos do trono celestial no texto e na experiência religiosa da comunidade cristã, como aparece em At 2,1-4, as obras litúrgicas entre os Manuscritos de Qumran são importantes, pois refletem a ideia comum no Judaísmo Antigo da associação com o mundo angélico (García Martínez, 2000, p. 188), em especial nos Cânticos do Sacrifício Sabático (Shîrôt ôlat ha-shabbat = 4QShirim‘Olot ha-sabbat = 4QShirotShabba-h), testemunhados em oito cópias na caverna quatro (4Q400-4007), uma na caverna onze (11Q17 =11QShirShabb) e em Massada (Fletcher-Louis, 2002, p. 252-254). “Os Cânticos têm extáticas qualidades e podem evocar experiências místicas ou sete experiências visionárias de membros da comunidade” (A. Collins, 1996, p. 14). E como alguns pesquisadores afirmam, a leitura dos Shîrôt proporcionava aos membros da comunidade a participação nos sacrifícios sabáticos dos anjos no templo celeste, substituto do templo de Jerusalém (García Martínez, 2000, p. 58). Collins chega a afirmar que a experiência de leitura desses textos no contexto litúrgico gerava a mesma sensação da leitura dos apocalipses do tipo viagem celestial (Collins, 1997a, p.141), porque conduzia a comunidade à caminhada imaginária nos santuários celestes e à participação entre os anjos no culto nos céus. Carol Newsom segue o mesmo raciocínio e afirma que a recitação dos cânticos gerava experiência de êxtase e levava a comunidade à liturgia angélica (Newsom, 1998, p.20). Por isso, Nicklesburg, seguindo esses autores, afirma que
Em geral, seu conteúdo não é tecnicamente litúrgico, isto é, os cânticos não se dirigem a divindade. Em vez disso, eles descrevem a angélica adoração e apela para os anjos participarem nessa adoração. Então, podemos vê-los ‘como meio de comunicação com os anjos no ato do louvor, e uma forma de misticismo comunitário’. Eles criavam uma experiência pela qual a comunidade na Terra era levada emocionalmente para a presença dos anjos e, certamente, diante do trono da divindade (Nicklesburg, 2005, p.153)

Os Cânticos mostram a íntima relação das realidades celestial e terrena no imaginário do culto no mundo judaico-cristão. Além dessa função de associação, as realidades celestiais são reveladas para servirem de modelo para os cultos humanos, como se fosse possível contemplar o mundo da casa de Deus servindo-se dele como paradigma de adoração para a comunidade. Assim, os sacerdotes angélicos são modelos e legitimadores transcendentes da função sacerdotal na Terra.
Em At 2,1-4 encontramos a presença de elementos celestiais no culto cristão. Esse texto, como vimos, pode ser mais antigo do que sua redação lucana e reflete, ao lado de alguns textos paulinos, a imagem de um Cristianismo cheio de experiências de transe religioso e êxtase. Na literatura apocalíptica, essa experiência religiosa está vinculada a elementos que fazem parte da realidade celestial (da Mercavah). As línguas de fogo é um dos elementos que compõem esse quadro, como citamos, porque estão nas paredes e portas do trono celestial na visão de Enoque – e o próprio fogo, que desde Ezequiel, como também na literatura de Qumran, está vinculado a Mercavah.
Segundo Paulo Nogueira, a própria glossolalia fazia parte da realidade do culto celestial. Ele chega a essa conclusão com a leitura de 4Q400 frag. 2, 7-11 (Nogueira, 2003, p.66). Neste texto, na linha 7 aparece a expressão língua do pó em contraste com língua de conhecimento, da linha 11, que pode ser referência a algum idioma angelical. Nickelsburg percebe que este contraste claro entre o conhecimento humano e dos seres celestes está no âmbito do tributo de louvor a Deus (Nickelsburg, 2005, p.152). Os anjos teriam uma espécie de língua excepcional na tradição judaico-cristã de louvor – como o mesmo Nogueira indicou usando o Apocalipse de Paulo (Nogueira, 2003, p.69).
Em At 2,1-4 estamos diante de um texto que nos revê-la uma comunidade cristã influenciada por imagens apocalípticas, acessadas por visionários em viagens celestiais vinculadas ao misticismo da Mercavah. O texto em si não narra uma viagem celestial, mas usa o imaginário do templo celestial exposto por esse subgênero, muito comum na literatura apocalíptica. As línguas de fogo e a própria glossolalia faziam parte da realidade celeste, mas à luz de At 2 estavam presentes na fé das comunidades cristãs em cultos cheios de êxtase.
At 2,1-4 dá-nos pistas sobre como o mundo apocalíptico foi apropriado e (re)significado nas práticas culticas dos Cristianismo (s) Originário (s). Talvez, como fez Paulo, Lucas domesticou propositalmente, em nível redacional, essa experiência com o objetivo de criar fronteiras.
Acredito, e isso precisa ser averiguado, que na pluralidade de Cristianismos das Origens houvesse alguns grupos mais eufóricos, que supervalorizavam as experiências extáticas e o mundo apocalíptico. E mais, é possível, como acontecia com os Cânticos do Sacrifício Sabático, que suas tradições fossem usadas para incentivo e legitimação de experiências coletivas.
Conclusão   
Assim, Reafirmo a conclusão de C. Rowland, de que é impossível entendermos as origens dos Cristianismos das Origens sem tratarmos com cuidado a apocalíptica judaica. No texto de At 2,1-4, creio ser essa afirmação indispensável, pois a narrativa revela alguns indícios da presença de temas do imaginário apocalíptico das viagens celestiais. E mais, a experiência religiosa refletida na narrativa revela um Cristianismo de liturgia não controlada, como alguns exegetas pintaram durante bom tempo sobre a origem cristã, mas de uma comunidade com experiências extáticas e que compartilhava das realidades celestiais testemunhadas pela literatura apocalíptica. 
Depois de muito tempo após sua produção e circulação, o mesmo texto serviria, durante o Séc. XX, para outros movimentos cristãos carismáticas, tais como o Pentecostalismo Clássico e a Renovação Carismática Católica. Isso mostra a dinâmica da recepção dos textos religiosos, e como temas antiguíssimos, como os encontrados na literatura mística do Judaísmo do segundo templo, permanecem vivos na cultura.        

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4 comentários:

  1. Muito legal Kenner! Que pena que aquele nosso estudo conjunto (céu e inferno) teve que ser adiado...

    Abração,
    Eliz

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  2. Olá Eliz,

    Valeu pelo comentário. É verdade, uma pena o adiamento do projeto. Contudo, disseste bem: adiamento!

    abração

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  3. Olá Kenner,

    Paz e Bem!

    Percebo que a tendência de buscar nas tradições judaicas, e suas literaturas, a compreensão dos textos e teologias contemporâneas é uma prática já estabelecida na academia. Embora seu texto enalteça mais a perspectiva exegética, penso que esse caminho decline fatalmente em direção a outro tema bem explorado aqui no Brasil: a busca pelo Jesus histórico. O historiador André Leonardo Chevitaresse, naturalmente numa perspectiva histórica, tem em andamento um grupo de pesquisa sobre o assunto.
    Li os três posts; e como é bom conhecer novas bibliografias a fim de compreender melhor a nossa tradição. Nisso está a importância de se ter um pesquisador em plena produção. Força nessa caminhada!

    Um abraço,

    M.O.O
    Rio de Janeiro - RJ

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  4. Olá Marcelo,

    obrigado pela participação e sugestivo comentário. Sim, conheço o prof. Chevitarese, inclusive ele dialoga muito com o nosso grupo de pesquisa (oracula - www.oracula.com.br).

    Sobre a questão das perspectivas exegética e histórica, não sei se seria possível bifurcá-las, como se fossem dois trabalhos diferentes. Tanto os métodos históricos quanto a exegese podem ter a experiência religiosa como preocupação e dialogarem com um campo vastíssimo de ciências que ajudem na leitura e construção do passado. As duas ferramentas são hábeis para tecerem ficções gramaticais, como dia N. Frye.

    Continuemos dialogando e trocando bibliografias...

    Grande abraço

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