terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Morre o Teólogo Dom Robinson Cavalcanti

Ontem, segunda-feira (27/02/2012), recebi uma ligação do meu amigo Rainerson Israel, por quem fui informado da morte de Dom Robinson Cavalcanti. E nas palavras do meu amigo minero, “de maneira inacreditável, foi esfaqueado pelo seu filho adotivo!”. Não o conhecia pessoalmente – como estudante de teologia li alguns de seus livros e artigos –,mas na hora em que ouvi a notícia, fiquei atônito e perplexo, pois se tratava da morte de um pai e de uma mãe pelas mãos do próprio filho.

Pela incoerência da vida, uma pessoa que marcou sua história defendendo-a, na contra mão do sistema que tolhe os bens necessários e de direito a alguns e sobeja a outros, despede-se dela de forma, no mínimo, inexplicável; não que a morte seja em alguma instância razoável, mas sempre esperamos que a partida seja de outra maneira. Como diria o poeta, “é tão estranho os bons morrem jovens”. Robinson Cavalcanti, pelo que representa para teologia brasileira, seria sempre jovem...
Basta-nos agora simplesmente silenciar frente o absurdo, chorar a morte injustiça e violenta do justo, render as devidas homenagens e lembrar-se de sua militância para torná-la modelo de ação. Revisitemos seus discursos, seus textos e suas obras para torná-lo sempre vivo.
Robinson Cavalcanti sempre se arriscou por suas escolhas, e por aqueles que não poderiam lhe dar nada em troca. Sua morte é a prova de que amar é sempre arriscado, e às vezes nem a gratidão terá como resposta. Contudo, escolheu pelo amor, mesmo correndo o perigoso de entrega-se ao outro sem a garantia de retribuição à altura, e que às vezes responde com apunhaladas. No entanto, se pudesse nos deixar uma mensagem póstuma ele diria para corremos também este risco e fazermos do bem e da justiça nossas bandeiras de luta.
Certo é que a morte não pode calar a voz dos profetas, pois suas palavras e ações quando preservadas são instrumentos de ressureição todas as vezes que lembradas e aplicadas. Por isso, quando falarem de missão integral, justiça social, protestantismo e política no Brasil ou na América Latina, ele estará entre nós.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Ué, mordaça gospel?



Nestes últimos meses – falar em meses é eufemismo – estou acompanhando a participação das bancadas evangélicas, ladeadas por pastores, em discussões ferrenhas sobre temas como PL 122, aborto, união estável homoafetiva e agora sobre uma declaração do ministro Gilberto Carvalho, no Fórum Social temático. Antes de qualquer coisa, quero dizer que “eu não aceito ser representado por pessoas tais como sua excelência senador Magno Malta e muito menos pelo Pr. Silas Malafaia”. Então, quando eles se pronunciam como representes da “classe” evangélica, estão mentindo, porque não me representam e a muitos outros também não.

Senador Magno Malta que me perdoe, mas as declarações do ministro Gilberto Carvalho são verdadeiras! Realmente as classes por ele citadas são transpassadas pelos evangélicos, e os pastores que falam na TV influenciam-nos em muitos temas. Ele não mentiu ao dizer que esses influentes pregadores televisivos são teológico e politicamente conservadores. E mais, o ministro tem todo o direito de falar o que acha sobre nós, não é isso que queremos em relação aos homossexuais? Não temos medo da “mordaça gay”? Ora, desejamos uma “mordaça gospel”? Não queremos falar do inferno, do pecado do homossexualismo, de 1 Co 6,10? Eles também devem ter o direito de criticar; não é a primeira vez que os cristãos são criticados e nem será a última. O evangelho não precisa de pessoas cuspindo saliva, com sofismas, em plenárias, para defendê-lo. Quer ser um representante do movimento de Cristo no legislativo? Defenda os pobres; condene as relações antiéticas dos partidos; denuncie os abusos salariais e regalias de senadores e deputados; denuncie os pastores que vendem voto; alie-se não por desejar ou prever mais votos, mas simplesmente por encontrar possibilidades de realização dos interesses do povo com tal aliança, ou seja, torne-se naquilo que não é hoje a realidade da política brasileira.

Precisamos ser coerentes, a maioria das críticas ao mundo cristão em geral nós mesmos deveríamos fazê-las, pois temos entre nós muitos politiqueiros, negociadores da fé, mentirosos, hipócritas, líderes que usam o púlpito para favorecerem políticos em troca de benefícios e status, e que até defendem causas não por desejarem o bem do Reino, mas para marcarem espaço e receberem apoio dos grupos cujas opiniões são as mesmas; não é verdade senador Magno Malta, deputado Marco Feliciano e senhor Pr. Malafaia?

Em momento algum o ministro disse que os evangélicos são insignificantes, que não tiram drogados das ruas ou não fazem nada pela nação. O que ele expôs, e muitos outros evangélicos/protestantes e cristãos em geral concordam, é que o conservadorismo de alguns líderes acaba influenciando uma grande massa. Isso é a pura verdade! O problema não é ser conservador, o crime é vender a imagem de que todos no mundo cristão o são! Vossa excelência Magno Malta, a critica não foi feita ao trabalho social dos evangélicos, mas à inflexibilidade de alguns setores da Igreja.

Como cristãos, não devemos exigir o pedido de perdão, caso seja necessário, dos que nos ofendem. Que evangelho Magno Malta e os demais políticos que aderiram a essa causa querem defender? Acho que a melhor pergunta deveria ser: a quem querem agradar? E o que querem ganhar? Na fala desses líderes, parece-me que o mundo evangélico se tornou um grande exercito ou facção organizada, que se levantará ferozmente contra todos que tocarem em seus membros. Senador Magno Malta e demais políticos, o discurso de Jesus não exige o pedido de desculpas para os que batem na nossa face, e nem requer explicações daqueles que nos exigem andar uma milha.

Sim, temos crescido e somos muitos, mas isso não nos dá o direito de ameaçarmos os políticos (ou qualquer pessoa) que não acreditam nas posições evangélicas, ou melhor, de algumas posições de alguns mais conservadores do mundo evangélico. Sempre é a mesma coisa, quando algo desagrada essa ala: “cuidado fulano, somos tantos... cuidado fulana, podemos eleger quantos quisermos...”. Como assim, cristã fazendo ameaças? Isso me faz lembra tempos tenebrosos do Cristianismo!

O problema é que essa turma fica caçando temas periféricos para agradar uma ala dos evangélicos. São vampiros em busca de sangue novo! Depois do discurso desses, a sensação é que o “mundo cristão foi defendido”! “Oremos e votemos nesses apologetas”, diriam os telespectadores fiéis a eles.

Eu tenho a sensação que esse tipo de postura agressiva mais atrapalha do que promove o Reino, pois cria uma imagem de intolerância, que infelizmente não é enganosa em alguns casos. No entanto, no fundo, parece-me que eles querem mesmo é agradar e garantir o pão de cada dia, que não é barato, com esses temas e posturas.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

As Origens Cristãs e o Misticismo Apocalíptico. Uma Leitura de At 2, 1-4 (Final).

Encerrando a série de posts sobre "As Origens Cristãs e o Misticismo Apocalíptico. Uma Leitura de At 2, 1-4" apresento aqui o último capítulo, com toda a bibliografia usada nas três publicações, sobre a relação da tradição do misticismo apocalíptico e os Cristianismos das Origens. Caso queira se inteirar em todo o assunto, leia as outras duas postagens ("As Origens Cristãs e o Misticismo Apocalíptico. Uma Leitura de At 2, 1-4 " e "As Origens Cristãs e o Misticismo Apocalíptico. Uma Leitura de At 2, 1-4 [parte II]).  

Imagens apocalípticas do mundo celestial e a experiência de êxtase em At 2, 1-4

            Para entendermos a presença desses elementos do trono celestial no texto e na experiência religiosa da comunidade cristã, como aparece em At 2,1-4, as obras litúrgicas entre os Manuscritos de Qumran são importantes, pois refletem a ideia comum no Judaísmo Antigo da associação com o mundo angélico (García Martínez, 2000, p. 188), em especial nos Cânticos do Sacrifício Sabático (Shîrôt ôlat ha-shabbat = 4QShirim‘Olot ha-sabbat = 4QShirotShabba-h), testemunhados em oito cópias na caverna quatro (4Q400-4007), uma na caverna onze (11Q17 =11QShirShabb) e em Massada (Fletcher-Louis, 2002, p. 252-254). “Os Cânticos têm extáticas qualidades e podem evocar experiências místicas ou sete experiências visionárias de membros da comunidade” (A. Collins, 1996, p. 14). E como alguns pesquisadores afirmam, a leitura dos Shîrôt proporcionava aos membros da comunidade a participação nos sacrifícios sabáticos dos anjos no templo celeste, substituto do templo de Jerusalém (García Martínez, 2000, p. 58). Collins chega a afirmar que a experiência de leitura desses textos no contexto litúrgico gerava a mesma sensação da leitura dos apocalipses do tipo viagem celestial (Collins, 1997a, p.141), porque conduzia a comunidade à caminhada imaginária nos santuários celestes e à participação entre os anjos no culto nos céus. Carol Newsom segue o mesmo raciocínio e afirma que a recitação dos cânticos gerava experiência de êxtase e levava a comunidade à liturgia angélica (Newsom, 1998, p.20). Por isso, Nicklesburg, seguindo esses autores, afirma que
Em geral, seu conteúdo não é tecnicamente litúrgico, isto é, os cânticos não se dirigem a divindade. Em vez disso, eles descrevem a angélica adoração e apela para os anjos participarem nessa adoração. Então, podemos vê-los ‘como meio de comunicação com os anjos no ato do louvor, e uma forma de misticismo comunitário’. Eles criavam uma experiência pela qual a comunidade na Terra era levada emocionalmente para a presença dos anjos e, certamente, diante do trono da divindade (Nicklesburg, 2005, p.153)

Os Cânticos mostram a íntima relação das realidades celestial e terrena no imaginário do culto no mundo judaico-cristão. Além dessa função de associação, as realidades celestiais são reveladas para servirem de modelo para os cultos humanos, como se fosse possível contemplar o mundo da casa de Deus servindo-se dele como paradigma de adoração para a comunidade. Assim, os sacerdotes angélicos são modelos e legitimadores transcendentes da função sacerdotal na Terra.
Em At 2,1-4 encontramos a presença de elementos celestiais no culto cristão. Esse texto, como vimos, pode ser mais antigo do que sua redação lucana e reflete, ao lado de alguns textos paulinos, a imagem de um Cristianismo cheio de experiências de transe religioso e êxtase. Na literatura apocalíptica, essa experiência religiosa está vinculada a elementos que fazem parte da realidade celestial (da Mercavah). As línguas de fogo é um dos elementos que compõem esse quadro, como citamos, porque estão nas paredes e portas do trono celestial na visão de Enoque – e o próprio fogo, que desde Ezequiel, como também na literatura de Qumran, está vinculado a Mercavah.
Segundo Paulo Nogueira, a própria glossolalia fazia parte da realidade do culto celestial. Ele chega a essa conclusão com a leitura de 4Q400 frag. 2, 7-11 (Nogueira, 2003, p.66). Neste texto, na linha 7 aparece a expressão língua do pó em contraste com língua de conhecimento, da linha 11, que pode ser referência a algum idioma angelical. Nickelsburg percebe que este contraste claro entre o conhecimento humano e dos seres celestes está no âmbito do tributo de louvor a Deus (Nickelsburg, 2005, p.152). Os anjos teriam uma espécie de língua excepcional na tradição judaico-cristã de louvor – como o mesmo Nogueira indicou usando o Apocalipse de Paulo (Nogueira, 2003, p.69).
Em At 2,1-4 estamos diante de um texto que nos revê-la uma comunidade cristã influenciada por imagens apocalípticas, acessadas por visionários em viagens celestiais vinculadas ao misticismo da Mercavah. O texto em si não narra uma viagem celestial, mas usa o imaginário do templo celestial exposto por esse subgênero, muito comum na literatura apocalíptica. As línguas de fogo e a própria glossolalia faziam parte da realidade celeste, mas à luz de At 2 estavam presentes na fé das comunidades cristãs em cultos cheios de êxtase.
At 2,1-4 dá-nos pistas sobre como o mundo apocalíptico foi apropriado e (re)significado nas práticas culticas dos Cristianismo (s) Originário (s). Talvez, como fez Paulo, Lucas domesticou propositalmente, em nível redacional, essa experiência com o objetivo de criar fronteiras.
Acredito, e isso precisa ser averiguado, que na pluralidade de Cristianismos das Origens houvesse alguns grupos mais eufóricos, que supervalorizavam as experiências extáticas e o mundo apocalíptico. E mais, é possível, como acontecia com os Cânticos do Sacrifício Sabático, que suas tradições fossem usadas para incentivo e legitimação de experiências coletivas.
Conclusão   
Assim, Reafirmo a conclusão de C. Rowland, de que é impossível entendermos as origens dos Cristianismos das Origens sem tratarmos com cuidado a apocalíptica judaica. No texto de At 2,1-4, creio ser essa afirmação indispensável, pois a narrativa revela alguns indícios da presença de temas do imaginário apocalíptico das viagens celestiais. E mais, a experiência religiosa refletida na narrativa revela um Cristianismo de liturgia não controlada, como alguns exegetas pintaram durante bom tempo sobre a origem cristã, mas de uma comunidade com experiências extáticas e que compartilhava das realidades celestiais testemunhadas pela literatura apocalíptica. 
Depois de muito tempo após sua produção e circulação, o mesmo texto serviria, durante o Séc. XX, para outros movimentos cristãos carismáticas, tais como o Pentecostalismo Clássico e a Renovação Carismática Católica. Isso mostra a dinâmica da recepção dos textos religiosos, e como temas antiguíssimos, como os encontrados na literatura mística do Judaísmo do segundo templo, permanecem vivos na cultura.        

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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

As origens cristãs e o misticismo apocalíptico. Uma leitura de Atos 2,1-4 (parte II)

Dando continuidade ao post anterior...


At 2, 1-4: línguas de fogo, som de vento e êxtase religioso



O texto narra a experiência assim:

1.Καὶ ἐν τῷ συμπληροῦσθαι τὴν ἡμέραν τῆς πεντηκοστῆς ἦσαν πάντες ὁμοῦ ἐπὶ τὸ αὐτό. 2.καὶ ἐγένετο ἄφνω ἐκ τοῦ οὐρανοῦ ἦχος ὥσπερ φερομένης πνοῆς βιαίας καὶ ἐπλήρωσεν ὅλον τὸν οἶκον οὗ ἦσαν καθήμενοι 3.καὶ ὤφθησαν αὐτοῖς διαμεριζόμεναι γλῶσσαι ὡσεὶ πυρὸς καὶ ἐκάθισεν ἐφ’ ἕνα ἕκαστον αὐτῶν, 4.καὶ ἐπλήσθησαν πάντες πνεύματος ἁγίου καὶ ἤρξαντο λαλεῖν ἑτέραις γλώσσαις καθὼς τὸ πνεῦμα ἐδίδου ἀποφθέγγεσθαι αὐτοῖς.


1. E se completando o dia de Pentecostes estavam todos juntos sobre o mesmo lugar. 2. E ocorreu inesperadamente do céu um ruído parecido com um violento vento desencadeado e encheu toda casa onde estavam assentados 3. e foram vistas por eles línguas divididas em parte, línguas como de fogo, e pousou-se sobre cada um deles, 4. e todos foram preenchidos do Espírito Santo e começaram falar diferentes/outras línguas de acordo como o espírito capacitava-lhes falar (tradução pessoal) 


    O texto de At 2,1-4 começa dizendo que no dia de Pentecostes, cinquenta dias depois da páscoa, os discípulos estavam reunidos. De repente (ἄφνω), surgiu do céu um som, ou eco (ἦχος), como de um desencadeado vento violento e encheu ou preencheu toda a casa onde estavam assentados (2,1-2). Lucas não fala de vento real, mas do som parecido com um vento forte, um barulho. A imagem do vento lembra as teofanias da tradição judaica (Ex 19,16-19, 1 Rs 19,11; Is 66,15; 4 Esd 13.10) (Pervo;Attridge, 2009, p. 61). O interessante é o fato de o som encher a casa. Isso lembra a mesma expressão de êxtase do visionário João do Apocalipse: “virei-me para ‘ver’ a ‘voz’” (βλέπειν τὴν φωνὴν) (Ap1,12). “Ver a voz” e “som que enche” são expressões de transe ou êxtase religioso.

    Da experiência auditiva, ou melhor, semi-auditiva (o som “enche” o lugar), são vistas por eles línguas como de fogo. Estas são divididas sobre cada um deles (2,3). O texto continua dizendo que foram preenchidos do Espírito Santo e por isso começaram a falar em outras línguas (héterais glóssais), conforme o mesmo Espírito dava-lhes capacidade para falar (v.4), ou de acordo como Ele concedia. Segundo Felicitas Goodman, a glossolalia não é um comportamento natural diário, mas um estado alterado da consciência (Goodman,1972, p.31). Aqui chegamos ao auge da experiência extática da cena. Depois de completados/preenchidos do Espírito, eles começam a falar línguas, concedidas pelo o que desceu do céu. O texto mostra a “possessão” para a expressão da glossolalia: “... foram preenchidos do Espírito Santo e começaram falar diferentes/outras línguas de acordo como o Espírito capacitava-lhes falar” (v.4). Uma das expressões do êxtase na religiosidade antiga, segundo I. Lewis, é ser tomado pela divindade (Lewis, 1977, p.18).

    O quarto verso usa o verbo ἀποφθέγγομαι para se referir ao falar com influência do Espírito. Essa expressão se refere ao falar profético ou inspirado, em êxtase. E pode ser traduzida como “falar com força”, “claro”, “com ênfase” (Kittel, 1995, p.75). Na Septuaginta o verbo é usado no particípio para traduzir a palavra “profeta” em Ml 5,11, como também a ação de profetizar de 1 Cr 25, 1. Em Atos é usada para caracterizar o discurso de Pedro depois do pentecostes (2,14) e o de Paulo diante de Agripa (26,25), que podem ser vistos tanto como um falar comum, como também uma fala inspirada ou conduzida por uma experiência de êxtase ou transe, especialmente em At 2,14.

    Percebemos no texto algumas imagens importantes: som de vento, línguas como de fogo ladeadas por expressão de êxtase e glossolalia pela possessão do Espírito. Esses temas costumam a parecer na apocalíptica Judaica, especialmente nos de tipo viagem celestial.


Os Textos de Viagem Celestial

    Na apocalíptica judaica, além do tema da escatologia, que é importante para entender esse mundo literário (Collins, 2010, p.30), encontramos a preocupação com as realidades celestiais. Collins chega a falar em um tipo específico de apocalipse, viagem celestial, que é marcado por especulações cosmológicas (Collins, 2010, p. 24). Nestes textos, o visionário é levado até regiões celestiais e contempla a organização cósmica, as funções dos anjos e o templo celestial, com a Mercavah. Através dessas experiências o visionário além de ter acesso a uma sabedoria superior, ele passava por transformações angelomorficas (2 En).

    Além da tradição judaica, no Mundo Antigo em geral a experiência xamânica de êxtase e viajar para o céu era comum (Adela Collins, 1996, p.13; Tabor, 1999; Tabor, 1986, p.42). Para Tabor, o tema da jornada celestial pode ser dividido em quatro tipos básicos ou categorias (Tabor, 1999). O primeiro, “ascensão como uma invasão do céu”, é um tipo de ascensão celestial com ideia de invasão do reino celestial de Deus. No segundo tipo, “Ascensão para receber revelação”, a ascensão envolve uma viagem de ida e volta da terra ao céu ou da experiência visionária da corte celestial, da qual alguém retorna à experiência normal (subida/descida). Neste tipo de viagem celestial, não há a ideia de invasão, como no anterior. A terra é o lugar da morada dos homens, mas o céu pode ser visitado. Esta compreensão de ascensão domina o Livro dos Vigilantes (1 En 1-36). A figura lendária de Enoque é levada pelos reinos celestes e descobre segredos cósmicos, aparecendo até mesmo diante do sublime trono de Deus. A versão grega do Testamento de Levi (Séc. II a.C.) utiliza o tema da ascensão de um modo semelhante, como faz a Vida de Adão em latim (Séc. I d.C.) e o Apocalipse de Abraão. Em cada um destes textos a ascensão funciona como um veículo de revelação e oferece autoridade divina para a sabedoria cósmica e escatológica, legitimando ideias de diferentes partidos.

    No terceiro, “ascensão para a vida celeste imortal”, um mortal obtém a imortalidade e vai morar entre os seres celestiais. Isso pode acontecer de duas maneiras: (1) um personagem pode receber uma vida divina imortal, ou (2) a alma, presa a mortalidade, pode receber a vida divina imortal.

    O quarto tipo, “ascensão como um antegozo do mundo divino”, a ascensão envolve uma jornada ou “visita” ao céu que funciona como antecipação da ascensão final à vida celeste. Embora relacionado à segunda categoria – a ascensão para receber revelação –, esta é fundamentalmente diferente. Em 1 Enoque 39, fala-se como o visionário foi levado ao céu e sua experiência de transformação (39.14), e é lhe dito que depois ascenderia permanentemente ao céu e receberia glória e vida imortal divina (cap. 70-71). 2 Enoque também reflete um padrão semelhante. A jornada de Enoque pelos sete céus, na qual permaneceu 60 dias (cap. 1-20), é seguida por um retorno a terra. A experiência o transforma e funciona como antecipação de sua translação final para o céu.

    Há, também, um texto importante entre os Papiros Mágicos Gregos, chamado de “Liturgia de Mitra” (PGM 4. 624-750), no qual há um iniciado que deseja ascender ao céu para fazer a jornada com todos seus perigos e potencialidades. Há textos judaicos, tais como Hekhalot Rabbati, que têm fortes paralelos com tais materiais mágicos, mostrando que estamos lidando aqui com um fenômeno comum no Mundo Antigo (Davila, 2001, p.32-42).

    Pelo que parece, as experiências místicas de viagens até as regiões celestiais e o acesso às revelações, especialmente no misticismo judaico, estavam intimamente ligadas ao êxtase ou ao estado alterado de consciência (Malina, 1995, p. 27-28).

    Por exemplo, no final da primeira visão a respeito da origem do mal no mundo, 4 Esdras diz: “acordei com o corpo tremendo de medo e a alma tão fadigada de desmaiar; mas aquele anjo que veio e tinha falado comigo me sustentou, fortalecendo-me me colocou de pé” (5.14-15). Enoque, no Livros das Parábolas de Enoque, depois de ver o Principal de Dias, está em êxtase: “caí de rosto no chão, e toda minha carne se dissolveu e meu espírito se transtornou. Gritei em alta voz com grande força, eu bendisse, elogiei e exaltei” (1 En 71,11)

    No misticismo apocalíptico , entre outras coisas, o visionário vai até o palácio divino e contempla coisas que lembram as imagens que estão relacionadas à experiência de êxtase de At 2,1-4, como mostraremos a seguir. Podemos adiantar que o texto lucano não tem características de uma experiência de viagem celestial, mas cita algo que Enoque encontrou no céu durante sua viagem.


1 Enoque e a chegada ao céu: movimento enoquita e o templo celestial


    O livro de 1 Enoque é uma obra composta por cinco livros: Livros dos Vigilantes (6-36), Parábolas de Enoque (37-71), Livro Astronômico (72-82), Livro dos Sonhos [com o apocalipse dos Animais] (83-90) e Epístola de Enoque (91-105). Dentro da Epístola de Enoque encontramos o Apocalipse das Semanas (93, 1-10; 91, 11-17). Em Qumran foram achados em aramaico pedaços de todos esses livros – com exceção ao livro das Parábolas. Em Qumran, do Livro Astronômico, por exemplo, foram encontradas quatro copias em lugares diferentes. Um fato intrigante para os pesquisadores é a presença de onze cópias do “Livro dos Gigantes” (1Q23; 2Q26; 4Q203; 4Q530-3; 6Q8) (Collins, 1997a, p.22) .

    1 Enoque é o imo de uma antiga e autônoma vertente do judaísmo do segundo templo: o judaísmo enoquita. Desde 1979, num artigo da revista Henoch, Paolo Sacchi apresentou Enoque não somente como um protótipo do gênero apocalíptico, mas também de uma distinta variante do judaísmo (Boccaccini, 2005, p.4). Em 1990, o mesmo Sacchi, faz a primeira tentativa de escrever uma história deste movimento enóquico. Segundo ele, o conceito do mal seria sua principal particularidade (Sacchi,1997, p.88-90). Posteriormente, no seu comentário a 1 Enoque, em 2001, Nickelsburg confirma a existência desse movimento e complementa dizendo que a lei de Moisés não tinha papel de norma universal no enoquismo (Nickelsburg, 2001, passim). A partir desses trabalhos, nos últimos anos, Boccaccini defende a existência desse movimento, e avança relacionando-o com o essenismo. Esse autor chega dizer que o “próprio texto de 1 Enoque, nos seus 108 capítulos, mostra evidências de uma comunidade ou grupo por causa dos termos coletivos: os justos, os escolhidos, os santos, que indicam uma consciência de comunidade, que tem o Mito dos Vigilantes como centro narrativo” (Boccaccini, 2005, p. 5).

    J. J. Collins ao afirmar que “um movimento ou comunidade pode também ser apocalíptico se este for formado, em certo grau, por uma específica tradição apocalíptica” (Collins, 1997b, p.37), possibilita García Martínez falar de uma “enoquita tradição apocalíptica”, pois tem o livro de 1 Enoque como sua base. Mesmo com diferentes composições, explica García Martínez, os textos formam um mesmo movimento, ou estão alicerçados em uma mesma tradição; suas diferenças servem para ampliar, na verdade, a visão de mundo de uma obra para outra (García Martínez, 2007, p.4) . Por isso, a contradição entre Livro dos Vigilantes e Epístola de Enoque, concernente à origem do mal, refletem uma mesma tradição ideológica, chamada de escola enoquita. Mesmo com as contradições, os textos fazem parte de um mesmo fundo tradicional, ou melhor, de uma mesma escola (García Martínez, 2007, p.5). Caminhando nessa perspectiva, Boccaccine parte da hipótese de Groningen para origem de Qumran, e faz uma convincente apresentação da existência de um movimento escriba sacerdotal conhecido como judaísmo enóquico ou enoquita, que teve grande influência no mundo judaico do segundo templo e nos Cristianismos (Boccaccini,1998).

    Esse grupo ou comunidade acreditava que ao possuir a divina sabedoria contida nos textos de 1 Enoque, tornavam seus membros uma comunidade escatológica de escolhidos, que esperavam o julgamento e a consumação do fim dos tempos. Na verdade, não podemos saber como se chamavam ou se autodenominavam, mas certamente tinham Enoque como figura central (Boccaccini, 1998, p.161-185).

    Segundo Boccaccini, esses textos de Enoque foram escritos por membros do sacerdócio de Jerusalém, mas um grupo antizadoquita. Uma espécie de movimento sacerdotal dissidente, ativo em Israel no fim do período persa e início do helênico (IV séc.). Contudo, Boccaccini deixa claro que o enoquismo era um grupo de oposição entre a elite do templo, e não um simples grupo de separatistas. No entanto, o centro do judaísmo enoquita não era a Torah nem o Templo (Boccaccini, 1998, p. 48). Os dois grupos (zadoquita e enoquita) interpretavam Ezequiel diferentemente (Boccaccini, 1998, p. 78) e tinham ideias completamente contrastantes sobre a origem do Mal. Até cerca de 200 a.C, enoquismo e zadoquismo eram duas distintas e paralelas linhas de pensamentos no judaísmo (Boccaccini, 1998, p. 76).

    Segundo Martha Himmelfarb, a origem da tradição de ascensão de 1 Enoque 14, texto importante para o judaísmo enoquita, está na visão do trono carruagem de Ezequiel, pois marca o início da tendência para dissociar a casa celestial de Deus do templo em Jerusalém (Himmelfarb, 1993, p.11). Em Ezequiel, o templo deixa de ser apto para preservar a glória de Deus. As viagens celestiais serviriam para acessar o verdadeiro templo (Himmelfarb, 1993, p. 13). A ascensão de Enoque preservada no Livro dos Vigilantes serviu de modelo para outros apocalipses de viagem celestial – inclusive para o 2 Enoque – porque apresenta o céu como o templo de Deus (Himmelfarb, 1993, p. 14).


O mundo da Mercavah e as línguas de fogo em 1 Enoque 14

    Mercavah é uma expressão hebraica que significa “carruagem”. Há uma literatura do mundo judaico conhecida como “misticismo da Mercavah”, que tem suas raízes em Ez 1 e se desenvolveu no judaísmo posterior. Esse grupo de textos gira em torna do acesso místico ao trono-carruagem de Deus, acessado por viagens celestiais, como acontece em 1 Enoque 12-14.

    A partir do capítulo 12 de 1 Enoque, o visionário está entre os anjos (1 En 12, 1-4), os quais pecaram com as filhas dos homens (1 En 6-11). Os mesmos pedem a Enoque que interceda a Deus por seus destinos e de seus filhos, mas sua interseção não foi acatada e a condenação seria inevitável (1 En 14, 1-7). Logo adiante, de maneira inesperada, o texto diz: “mostrou-me uma visão assim” (1 En 14,8). Depois, Enoque é levado ao céu (14,8). Ao chegar lá, ele passa por alguns compartimentos e contempla a majestade da realidade celestial. Himmelfarb (1993, p. 15) e Nickelsburg (1981, p. 508) perceberam que no texto o céu e dividido em três partes, lembrando o templo.

    Primeiro, Enoque passa pelo pátio:

"Entrei até chegar-me ao muro construído com pedras de granizo, que é rodeado por uma língua de fogo, e comecei assustar-me. Entrei na língua de fogo e me aproximei até a casa construída com pedras de granizo, cujo muro e pavimento são lápidas pedras de granizo. Seu solo é também de granizo. Seus tetos, claros como estrelas e relâmpagos, onde estão os ígneos querubins; e seus céus são como água. Havia fogo ardente ao redor das paredes e também a porta se abrasava em fogo (1 En 14, 12)". (Diez Macho, 1982, p. 51).

    Depois ele entra na casa, a qual estava cercada por esses muros com línguas de fogo, e lá cai e tem a visão de outra casa maior:
"Entrei nesta casa que ardia como fogo e fria como granizo, onde não havia nenhum prazer ou vida, e o medo tomou-me e o terror oprimiu-me. Caí com a face no chão e tive uma visão: eis que havia outra casa, maior que esta, a qual as portas estavam abertas diante de mim, construídas de línguas de fogo – era tudo tão esplendido, ilustre e grande que não posso contar o tamanho da glória e grandeza. Seu solo era de fogo; por cima tinham relâmpagos e orbitas astrais; seu teto, de fogo abrasador "(1 En 14,13-17). (Diez Macho, 1982, p. 51).

    Nessa casa o visionário contempla o trono de Deus:

"Mirei e vi em um alto trono, com um esplendor aspecto, e (tinha ao seu redor) um circulo, com sol brilhante e voz de querubins. Debaixo do trono saiam rios de fogo abrasador, de modo que era impossível mirar. A grande Majestade estava sentada sobre o trono, com uma túnica mais brilhante que o sol e mais resplandecente que o granizo, de modo que nenhum dos anjos poderia entrar na casa" (1 En 14,18-21). (Diez Macho, 1982, p. 51).


    Enoque contempla o templo celeste. Ele é glorioso e a linguagem que o descreve é pesada e repetitiva. Os elementos que poderiam ser antagônicos na realidade terrestre lá convivem naturalmente (água, fogo, granizo). Um desses, em destaque na cena, é o fogo. Ele está nas portas, nas paredes e debaixo do trono, inclusive como línguas de fogo. Essas línguas estão sobre a parede da entrada e compunham as portas da casa onde estava o trono (14, 8.15).

    A imagem de línguas de fogo no ambiente do trono de Deus também aparece em outro texto do judaísmo enoquita, Parábolas de Enoque (1 En 37-71), na terceira parábola (58-71). Em 1 En 71,1 o texto diz que Enoque novamente é levado ao céu, onde contempla os anjos andando sobre chamas de fogo. Depois ele é arrebatado até o mais alto dos céus – como acontece com Levi no Testamento de Levi (Tet. de Levi 3, 1-2) – e visualiza pedras de escarlate e no meio das pedras contempla línguas de fogo vivas (71, 5). Novamente o fogo estava no ambiente celestial ao lado de anjos.

    Na literatura enoquita, muito importante para o mundo judaico e cristão (Terra, 2010, p. 100-140; Vanderkam, 1995, p. 143-180), as línguas de fogo serviam para descrever o ambiente do templo celestial, nas paredes do palácio e nas portas da entrada da casa, onde Deus estava sentado no seu trono.

    No próximo post veremos a relação destas tradições e o texto de At 2, 1-4...